O Equívoco das Eleições de Grandes Massas
A liberdade de participação e expressão é um valor universal, inerente à dignidade humana, e qualquer cerceamento a priori da possibilidade de alguém, ou de algum grupo, participar do processo político viciará o processo de escolha. Falando apenas em termos gerais, a garantia dessa liberdade de participação, de expressão, de organização etc., costuma ser razoavelmente bem atendida nas atuais democracias liberais.
Mas que dizer da segunda condição para um justo e competente processo de seleção dos mais qualificados, que é a da igualdade de oportunidades na disputa? No caso, a condição da igualdade de oportunidades se refere à disputa pelos postos de liderança política nos diferentes níveis do país. Será que há igualdade de oportunidades nas eleições de grandes massas que caracterizam os processos de escolha para os principais postos políticos nas atuais democracias liberais? Evidentemente que não, nem de longe.
Os processos eleitorais de grandes massas, que não raro chegam aos milhões de pessoas, caracterizam-se por campanhas caríssimas, as quais envolvem vultosos recursos (humanos, materiais, financeiros etc.) e envolvem necessariamente acesso a instrumentos muito onerosos de comunicação de massa.
Ora, a maioria da população possui poucos recursos, o que a impossibilita de financiar as campanhas, as quais implicam vultosos recursos financeiros. Além disso, os grandes meios de comunicação de massa são detidos por grupos privados. O que acontece na realidade desse cenário injusto é que a grande maioria fica completamente excluída de qualquer chance concreta de sucesso em uma disputa tão flagrantemente desigual.
E o resultado disso é bem evidente. A esmagadora maioria daqueles que se elegem pertencem a algumas categorias bem visíveis. Elegem-se, sobretudo, os ricos, ou aqueles financiados pelos grupos que detêm grandes recursos materiais; elegem-se também aqueles que aparecem com frequência nos meios de comunicação de massa, sejam artistas, atletas ou comunicadores de massa de vários tipos.
Cabe repetir que sendo os meios de comunicação empresas privadas, os interesses privados dessas empresas exercem uma “natural censura”, não apenas sobre aquilo que veiculam, mas muito especialmente sobre aqueles que empregam como seus comunicadores de todos os tipos.
Alguém já viu um comunicador de uma grande empresa de comunicação criticando os interesses econômicos, ou políticos, ou de qualquer outro tipo daquela empresa? Bem ao contrário, o que se sabe é de comunicadores, artistas etc., que perdem seus empregos por discordarem das ideias e dos interesses de seus patrões. Também é bem conhecido o poder imenso dos meios de comunicação de massa, sejam as redes de televisão, ou de rádio, ou mesmo dos grandes jornais e revistas, que em conjunto são não raro denominados de o “quarto poder”.
As modernas formas de comunicação digital – como, por exemplo, as redes sociais via Internet, das quais muitos esperam tanto – são incapazes de romper essa regra: – que o poder econômico e financeiro e as várias formas de popularidade demagógica também exercem papel dominante nesses meios digitais.
A última categoria a ter possibilidade de sucesso nesse sistema são os demagogos de todos os tipos. São aqueles que, consciente ou inconscientemente, iludem a massa com promessas que não poderão ser cumpridas. É claro que alguns conseguem combinar duas dessas categorias, ou mesmo as três, e aí então temos os fenômenos eleitorais, cujo exemplo atual, paradigmático e globalmente da maior significância, é o presidente Donald Trump dos EUA.
Em resumo, nos processos de escolha das atuais formas de democracias liberais (ou seja, nos processos eleitorais de grandes massas) são as seguintes três categorias que dominam amplamente os resultados das eleições: 1) os ricos e aqueles por eles apoiados ou financiados; 2) aqueles cujo trabalho implica numa exposição frequente e volumosa nos meios de comunicação massiva; e, 3) os demagogos de todos os tipos, cujo discurso vai ao encontro dos interesses e desejos dos grandes grupos populacionais, mesmo que sem as condições de atendê-los.
Muitas pessoas não percebem claramente que esse quadro tão injusto (das eleições de grandes massas) fica ainda mais agravado quando consideramos a terceira das condições de um bom processo de escolha, isto é, a necessária adequação entre as características e requerimentos da função, e o alcance da compreensão da população em questão.
As informações do Capítulo 3, sobre as diferenças de capacidades, nos mostraram o real perfil dos níveis de abrangência da compreensão social da população em geral. O grau de inocência de grande parte dessa população foi ali mostrado de forma clara. Sem uma visão nítida desse perfil e das enormes diferenças do alcance da compreensão social da população não é possível um diagnóstico sério acerca do quão injustas e incompetentes são as regras para a seleção dos governantes nos processos eleitorais das atuais democracias liberais.
Tomemos, a título de ilustração, apenas um exemplo concreto. Qual o sentido da população escolher os constituintes (1986), através do sufrágio direto, universal e obrigatório, quando de acordo com uma pesquisa (já mencionada) do Ibope no Rio Grande do Sul – que é um dos estados com melhores índices educacionais do país – 70,5 % da população eleitoral não sabia sequer o que era uma Constituinte?
Seria de causar surpresa que num processo de escolha dos dirigentes desse tipo a população eleja um presidente corrupto? Ou que ela eleja como deputado federal, um dos postos de maior responsabilidade, alguém que teve recursos para financiar uma campanha eleitoral caríssima (recursos próprios ou de ricos apoiadores), ou um traficante de drogas, ou um apresentador de programa de TV, ou um comediante, ou um demagogo, ou alguém por ser um bom atleta, e assim por diante?
Lembremos que isso não ocorre apenas no Terceiro Mundo. Basta ver o exemplo recente da eleição de Donald Trump nos EUA, ou políticos com tantos escândalos de corrupção nos países mais ricos do mundo. São tantos os exemplos, como no Japão, onde um primeiro ministro foi deposto porque descobriram que havia sido subornado por grandes empresas, como a Lockheed dos EUA. Ou o caso de Nixon nos EUA. Ou vários deputados e um primeiro ministro corrupto, sem falar numa atriz pornô eleita deputada, na Itália. Os exemplos são tantos e tantos que se tornam enfadonhos.
O quadro abaixo, a respeito da credibilidade dos políticos, é bem nítido acerca dos resultados desse processo de escolha dos dirigentes políticos nas atuais formas de democracias liberais. Estes dados são sobre a credibilidade merecida por aqueles que deveriam ser o que uma nação tem de melhor, pois ocupam os postos de maior responsabilidade. A pesquisa é do Ibope e foi publicada em Zero Hora, em 09/08/87. Desnecessário dizer que a situação no Brasil de 2020 não se apresenta melhor, com tantos escândalos de corrupção nos cargos mais elevados da nação! A pergunta apresentada foi a seguinte:
– “Você concorda ou discorda das afirmações abaixo usadas para descrever a atuação dos políticos?” A tabulação apresenta percentuais.
Esse quadro desalentador, por si só, já é um claro atestado acerca da incompetência desse sistema de escolha dos dirigentes políticos.
O Poder das Grandes Organizações
No entanto, não apenas quanto ao processo de escolha dos governantes esse modelo resulta incompetente. Também é claramente insuficiente no que diz respeito à capacidade de prover os governantes da necessária força de coerção, sobretudo, como vimos, para fazer frente ao enorme poder das grandes organizações.
Por que essas grandes organizações são tão poderosas? Em última análise, porque conseguem reunir de forma coesa os esforços de muitos milhares de pessoas, por vezes centenas de milhares de pessoas. Graças a essa reunião de esforços, ainda que por motivações de cunho eminentemente privatista, essas organizações apropriam-se de imensas quantidades de recursos econômicos, financiam e subornam dirigentes políticos, e assim por diante. E essas façanhas organizacionais são possíveis porque os seus departamentos de pessoal, entre outros, aplicam com eficácia um razoável conhecimento acerca das diferenças de capacidades!
Alguém conseguiria imaginar uma grande empresa, com centenas de milhares de funcionários, escolhendo seus principais executivos, seu conselho de administração, enfim, seus postos de maior responsabilidade, por meio de um processo de eleições diretas, com um voto para cada funcionário? Absolutamente não! Ou um exército escolhendo seus generais por eleições diretas de todos os componentes da força? De forma alguma!
A própria Igreja Católica Romana, que do ponto de vista meramente organizacional é um dos exemplos mais bem sucedidos da história, e cujos bispos e cardeais, para fora de sua organização, defendem a pseudo democracia liberal, mas não aplicam em sua própria casa um sistema tão ineficiente. Os seus fiéis não elegem o Papa, nem sequer os padres, e nem mesmo todos os bispos elegem o Papa. Apenas os cardeais procedem à escolha do chefe maior da Igreja!
Ora, os problemas de uma grande nação são muito mais complexos do que os problemas da administração de uma grande empresa, de uma força armada, ou de uma organização religiosa. Mas os mesmos líderes empresariais, militares, religiosos etc., que para fora de suas organizações defendem os atuais modelos políticos das democracias liberais, jamais pensariam em aplicá-lo nas realidades muito mais simples de suas corporações! Esse é um bom exemplo da “miséria” das elites. Ou seja, a miséria das ideias que dominam ao nível das elites, e que se projetam como as grandes instituições dos países na maior parte do mundo em nossos dias, sejam modelos de inspiração liberal, marxista, ou modelos derivados de tradições religiosas, que ainda são existentes em nossos dias.
A fraqueza do Estado organizado sob as formas atuais das democracias liberais foi atestada, várias vezes, na história recente do Brasil, e de tantas outras nações, sobretudo do Terceiro Mundo, ou, em nosso caso, da América Latina. Por que foram possíveis tantos golpes de estado, e por que serão possíveis tantos outros no futuro? Porque além de escolher muito mal os dirigentes, é um modelo de organização estatal fraco, impotente ante a força das grandes organizações, das quais ele geralmente não passa mesmo de um fantoche. E o mesmo fator que explica a força dessas corporações explica a fraqueza desse modelo.
Vimos que a força dessas corporações reside no fato de conseguirem reunir, ou organizar, de forma coesa dezenas ou centenas de milhares de pessoas. E perante a colossal força dessas corporações unicamente a força gerada por uma boa organização de toda a população de um país poderia sobrepor-se. É exatamente isso que os atuais modelos democrático-liberais não fazem, pois nos sistemas de eleições de grandes massas a organização política é muito frouxa, e a população permanece fragmentada, ou “atomizada”, devido, entre outros aspectos, à grande distância que separa os representantes dos representados. Isso porque é a boa organização, a coesão, ou a união como se diz popularmente, aquilo que gera a força – e não a fragmentação, a frouxidão quase amorfa.
Quando milhões de pessoas elegem diretamente uma alta autoridade, seja do legislativo ou do executivo, esse mesmo processo, além de muito incompetente e injusto como processo de escolha dos mais capacitados, gera um abismo entre a população e os seus dirigentes.
Ora, essa dupla característica, marcante nesse processo de escolha dos governantes, gera a fraqueza desse tipo de organização estatal, sobretudo em relação às gigantescas corporações, privadas ou públicas. Porque, como dissemos antes, mesmo as organizações públicas desenvolvem um espírito de corpo e interesses de cunho privatistas.
Esse duplo vício, de governantes mal capacitados e de uma péssima organização da população, gera inevitavelmente um estado débil, onde não há força capaz de regular e harmonizar os interesses das gigantescas organizações em benefício do bem-estar de toda a população.
Desnecessário seria dizer que essa fraqueza apenas é reforçada pela ordem de contrapesos dos três poderes, cuja separação, desde sua concepção original, visava enfraquecer o poder central. Esse enfraquecimento, como já explicado, na realidade é o objetivo visado, o qual é derivado da concepção de um “estado mínimo”, em face da necessidade de proteger os indivíduos contra a perversidade de um estado leviatânico. Nesses pontos, em resumo, residem as principais falhas dos atuais modelos de pseudo democracias liberais.
Conforme vimos anteriormente, numa citação de Philip Converse, são as grandes correntes de pensamento, especialmente aquelas dominantes nas camadas mais intelectualizadas, que constroem a vida das nações. Do mesmo modo, poderíamos acrescentar, elas influenciam pesadamente a vida dos indivíduos. As ideias que dominam as mentes da elite, aquilo que os líderes e os intelectuais pregam, aquilo que os grandes artistas inspiram, e assim por diante, nisso se converterá a vida de uma nação, uma vez que esses pensamentos hegemônicos também irão inevitavelmente plasmar as principais instituições sociais e, no caso, os modelos de organização sociopolítica. (Arnaldo Sisson Filho. O Que Há de Errado Com a Política?; Capítulo V)