“1. (*) Desse modo, o Cristo da Bíblia, o Cristo de Deus, o Cristo da Natureza e o Cristo da Gnose não é nenhum personagem único, anormal, inconcebível, de constituição híbrida e desordenada, tal como é aquele Cristo apresentado pelo Sacerdotalismo.
Sendo o equivalente, no homem, do Logos na Deidade, Ele é a Perfeita Razão de Deus na manifestação. Ele é o cumprimento, e não a subversão, da ordem natural-divina. Ele é a realização, tanto para o indivíduo quanto para o universal, das divinas potencialidades próprias e comuns a todos, em virtude de sua origem e constituição, pela lei imutável da Hereditariedade; o fruto maduro da semente implantada em todo homem, a semente de sua própria regeneração; a demonstração da “jóia preciosa” da divindade “nascida na fronte do sapo”, símbolo alquímico da matéria. E Nele, definido dessa forma, é devolvido ao homem o Salvador, o qual lhe foi privado pelos seus sacerdotes.
2. Geração, degeneração, regeneração – esses são os três termos da história espiritual do homem. O primeiro e o último são obras de Deus; o segundo é obra do próprio homem. Pois todas as coisas se dão pela geração, a qual é o produto da interação entre a Força e a Substância, Pai e Mãe, respectivamente, o resultado dependendo da vontade do gerador.
Uma vez gerado, o homem é livre para se degenerar, até que chegue seu tempo de ser regenerado. Suas possibilidades de regeneração dependem do uso que fez de seu período de liberdade. A evolução se dá por meio da geração; mas a escada da mesma pode ser descida até que se alcance uma condição na qual a regeneração é impossível, e a extinção, inevitável. O período da Graça subentendido na expressão “setenta vezes sete” expirou para ele.
3. As assim chamadas expressões “denunciatórias” da Bíblia e do Credo, são simplesmente afirmações da necessidade da observância das leis do ser para a salvação. Isso tanto para a vida espiritual como para a vida física. As condições essenciais à vida devem, em ambos os casos, ser respeitadas. E do mesmo modo que o fisiologista, se expressando na linguagem técnica de sua ciência, fala de forma afirmativa quando declara que se não for pelo cumprimento de certas funções pelo sistema físico do homem, ele sem dúvida perecerá; assim também falam de forma afirmativa aqueles que dizem o mesmo a respeito do sistema espiritual do homem. As condições da vida eterna, assim como as da vida passageira, estão fundamentadas na natureza das coisas; e não há nada de arbitrário na afirmação dessas condições por aqueles que as conhecem, mesmo que a linguagem usada seja técnica e não compreendida pelos ignorantes. O dogmatismo consiste tão somente na afirmação positiva daquilo que a própria pessoa que afirma não conhece positivamente.
4. A Bíblia especifica dois pecados como tendo um caráter especialmente hediondo e fatal, cuja natureza seus expositores oficiais falharam em compreender, ou pelo menos em tornar conhecido. Eles são chamados de “Anti-Cristo” e de “Blasfêmia contra o Espírito Santo.” Eles são essencialmente de uma mesma espécie, ainda que suas manifestações sejam diversas.
A chave agora restaurada acusa o Sacerdotalismo, desde seu começo, de representar o cometimento sistemático desses pecados em todas as suas manifestações.
5. “É Anti-Cristo aquele que nega o Pai e o Filho.” [1 João 2:22] O Pai e o Filho são negados quando se nega a Mãe. Pois excluir, da forma que o Sacerdotalismo excluiu, o princípio feminino da divindade – a Substância – é tornar impossível a relação simbolizada pelos termos Pai e Filho, tendo em vista que eles implicam e envolvem Esposa e Mãe.
6. Algo semelhante ocorre em relação ao pecado contra o Espírito Santo. Tanto em repouso como em atividade, na Divindade e na manifestação, a unidade divina deve compreender a dualidade, Força e Substância, Pai e Mãe, para tornar possível aquela eterna geração por meio da qual se dão a criação e a redenção, e nisso a manifestação de Deus em Cristo.
Que o pecado dessa negação com respeito ao Espírito Santo “jamais será perdoado, nem no mundo de hoje, quer naquele que está por vir” [Marcos 3:29], é porque, sendo um pecado contra o princípio essencial, tanto da Existência Atual como Daquilo que Será, ele carrega sua própria punição consigo. Ao negar que o Universo é gerado por Deus, e constituído pelas próprias Força e Substância de Deus, nega-se que o Universo seja uma manifestação de Deus. Nega-se, portanto, aquela correspondência entre Deus e a criação em virtude da qual “coisas invisíveis de Deus são claramente vistas, sendo compreendidas pelas coisas de que são feitas” [Romanos 1:20].
7. E isso nega a regeneração como o processo da manifestação de Deus através da individuação do homem, e negar isso é negar Cristo como a coroamento da evolução e, portanto, da criação.
8. Postulando como o material da existência algo que – não sendo essencialmente Deus – é irreal e não relacionado a Deus, tal negação constitui a negação de qualquer relação vital entre Deus e o Universo, tal como a de paternidade e filiação, ao ponto da exclusão da ideia do dever de um para com o outro, em ambas as direções. E considerar Deus apenas como Força, e não Substância; Vontade apenas, e não Amor; coloca no lugar de um Deus vivo e de um Universo vivo tão somente causa e efeito mecânicos e inconscientes.
9. A frase de Jesus: “meu Pai e vosso Pai, meu Deus e vosso Deus” [João 20:17], é uma afirmação da divindade da Substância e, consequentemente, da consubstancialidade de Deus e do homem. Foi tão somente o Sacerdotalismo que transformou o homem em um “filho do diabo”. Ao fazer isso o Sacerdotalismo atribuiu ao homem precisamente a paternidade que Jesus atribui ao próprio Sacerdotalismo, como quando dirigindo-se aos seus perseguidores e assassinos sacerdotais, ele diz: “Vós sois do vosso pai, o diabo.” [João 8:44]”
(Edward Maitland. O “Novo” Evangelho da Interpretação: Um Resumo do Cristianismo Místico da Dra. Anna Kingsford, pp. 44-52; grifos nossos)